sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

RESPOSTA AO TEMPO

Era uma simpática senhora de 100 anos, dessas que parecem não entender, ou aceitar, que já chegaram a um século de vida. Pelo contrário. Não apenas sua aparência era de setenta e poucos, como também seu jeito vívido mostrava que ela não estava disposta a parar tão cedo.

Procurou o hospital reclamando de uma fraqueza que tinha aparecido há alguns meses. Com o apoio de meu ótimo estudante de internato, decidimos internar para descobrir o que era. Nossa primeira pergunta foi simples: com aquela idade toda, fraqueza não era natural? Ela não gostou. Fez cara de quem não aceita ser tratada como alguém que deve passar o dia numa cama, e avisou "Sou campeã de dança na gafieira!".

Ela era mais surpreendente que isso. Conversamos sobre outros sintomas. Tinha apetite de leão e disposição para horas de atividade. De todas as coisas perguntas, a única que percebia era uma batucada no peito todas as vezes quando corria. QUANDO CORRIA. Realmente era difícil acreditarmos que alguém pudesse ser tão saudável naquela idade, e só isso nos ensinou que ser idoso não é deixar de viver.

Perguntamos se tinha alguma doença. Ela disse que em toda sua vida não adoeceu de nada sério, e só tomava remédio quando estava gripada. Não tinha pressão alta, diabetes ou colesterol... Nada! Comentou também que puxou à família: todos eram saudáveis, ninguém nunca ficou doente.

Logo na admissão dela, percebemos que estava muito pálida, embora não estivesse sentindo nada demais. Os primeiros exames confirmaram nossa suspeita: ela estava com anemia. Por esses exames, também, sua  anemia parecia ser apenas deficiência de vitamina B12. Era incrível, para nós, imaginar que depois de 100 anos aquela simpática senhora estava sendo internada num hospital pela primeira vez porque estava com pouca vitamina. Incrível e apaixonante.

Desconfiando dessa deficiência, lembramos que ela costuma ocorrer em quem faz cirurgias bariátricas, em quem tem doenças no intestino e em pessoas que seguem dietas vegetarianas. Logo desconfiamos: era esse o segredo. Quando interrogada se era Vegan, a senhorinha riu "Adoro uma carninha de porco! Adorava criar porco na fazenda só pra fazer churrasco no final de semana. Mas também gosto de carne de boi".

Já estávamos sem saída para aquele mistério, que era muito maior a respeito de sua jovialidade que de sua doença. No segundo dia de internamento, porém, seus novos exames assustaram: mostravam uma condição laboratorial chamada pancitopenia, quando todas as células do sangue estão muito diminuídas. A própria anemia por deficiência de vitamina poderia causar isso. Mas havia algo a mais. Suas células de defesa, que no normal deveriam estar no mínimo acima de 1000, e idealmente acima de 4000, eram apenas 10 células a cada mililitro de sangue. Isso colocava nossa senhorinha em alto risco de pegar infecções.

Ela foi colocada em um quarto de isolamento, para que ficasse protegida do contato com outras pessoas. Levamos seu caso para discussão com um especialista em doenças do sangue, e o veredito dele foi um fardo: a doença de nossa vozinha era, sem qualquer dúvida, uma leucemia.

No terceiro dia de internamento, ela não era a mesma vozinha ativa e simpática. Estava mole, sonolenta, reclamando de frio. Apresentava-se com febre e outros sinais que nos mostraram estar com infecção na urina. Nossos esforços para evitar que se contaminasse não haviam surtido efeito. Corremos atrás de começar antibióticos e medicações que pudesse protegê-la, uma vez que o corpo dela não tinha células suficientes para salvá-la.

No quarto dia de internamento, um de seus olhos cresceu e inchou, por conta de um novo foco de infecção, agora na região da órbita. Novos antibióticos foram adicionados. A senhorinha já mal falava, referia dores em todo canto, falta de ar. Sequer nos permitia lembrar de nossa querida moça de 100 anos que nos fizera rir antes. Agora, apenas a preocupação nos envolvia. Procuramos a família para explicar a doença e a gravidade dela, e o que disseram foi "Nós já estamos preparados para o pior".

Mas nós não estávamos. Antes era difícil aceitar que ela pudesse ser tão saudável, e agora era terrível compreender que alguém tão saudável tivesse de repente desenvolvido um câncer. No dia seguinte, o brilho de seus olhos apagou de vez. Ela descansou daquele sofrimento e de uma vida que, provavelmente, não mais fazia jus a tudo que ela era. Apesar disso, deixou em nós a sensação que só vale a penar viver tantos anos se tentarmos ser tão mentalmente saudáveis e tão fisicamente felizes quanto ela foi.


RESPOSTA AO TEMPO é uma música cantada por Nana Caymmi

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O BÊBADO E A EQUILIBRISTA

Eram jovens e felizes. Corriam o mundo em aventuras juntos, pouco preocupados com a ditadura militar que os cercava, ou com as dificuldades que havia com o início da vida adulta. Queriam se amar na praia, ouvindo as ondas e sob o luar.

Ela, uma moça simples mas apaixonada, daquelas que largariam tudo pelo amor. Ele, um rapaz bonito e galanteador, que dificilmente se envolveria em algo que durasse mais que seu dinheiro. Apesar de tão diferentes, se uniram em desejos opostos, mas explosivos. O que deveria ter sido uma semana, virou um mês, depois um ano. E, assim, nestas indas e vindas, se amaram por cinco anos. Até que ela cansou.

Ela decidiu que viver daquela forma, sem certeza de um futuro, não era sua melhor opção. Afastou-se dele, apesar dos sentimentos, e criou um caminho em que jamais o envolveu. Conheceu um novo homem. Casou, foi mãe. Construiu uma família serena, criou bem os filhos, que viraram sua fortaleza.

Ele seguiu a boemia. Continuou a se apaixonar por uma mulher diferente a cada dia, em festas, praias, noitadas. Chegava tarde demais para acordar no dia seguinte e estudar. Trabalhava quando não tinha outra escolha. Mal via os pais e, assim, soube apenas no dia seguinte quando o pai faleceu. A situação em casa ficou difícil: ele deveria ter assumido os cuidados com gastos, mas continuou a se divertir mais do que podia.

O tempo passou. Após 30 anos, o casamento dela desabou. Separou-se do marido, mas continuou morando com os filhos, com quem dividia sua felicidade. Já a vida dele estabilizou: viu-se obrigado a encontrar um emprego qualquer, e ali seguiu, com menor noitadas que antes.

Ele adoeceu. Teve tuberculose, mas foi tratado para tal. Emagreceu muito, ficou fraco. Melhorou com os remédios. Ela adoeceu. Entrou em depressão, mas foi tratada para tal. Perdeu peso, ficou mais sensível que jamais imaginou. Melhorou com o apoio dos filhos.

Numa noite, dessas em que nunca se imaginaria a ironia do destino, eles se reencontraram em uma festa. Os trinta anos não foram o suficiente para que deixassem de reconhecer o olhar um do outro. Ele se aproximou e, com o mesmo sorriso de galanteio, disse o quanto ela não havia mudado e o quanto estava bonita. Ela sentiu anos e anos de sentimentos guardados explodir. E, naquela mesma noite, relembraram por que amar sob o luar era inesquecível.

Aquela noite se tornou várias. Mas, enquanto na juventude era louvável apostar num amor sem freios, na meia-idade ela se encontrou diante de várias barreiras. A começar pelos filhos, que se colocaram contra, principalmente porque aquele homem não tinha objetivos de vida, não construíra nada.

Assim, se afastaram mais uma vez, embora continuassem a se falar por telefonemas saudosos. E também outra vez, ele adoeceu. Foi internado no meu hospital, onde descobrimos que era portador do vírus da imunodeficiência humana, e estava com várias doenças oportunistas por conta disso. Durante o tempo em que esteve internado, sendo tratado, ela reapareceu para visitá-lo. Revelou a nós todos que enfrentaria o mundo inteiro por aquele homem que, finalmente, aceitou que amava.

Quando ela descobriu a doença dele, porém, sentiu medo. Decidiu que merecia realizar exames. E confirmou: ela também estava infectada pelo HIV. Quando anunciei, ela quase chorou, mas controlou as emoções e perguntou "O que eu faço agora? Como vai ser minha vida?". Expliquei que, hoje, ter AIDS não significa interromper, mas reaprender a lidar com o próprio corpo. Ela perguntou então "E o amor, como lidar com o amor depois disso? Como vou me sentir capaz de amar alguém? Ninguém vai me querer mais". E declarou que, a partir daquele momento, estar perto do homem que sempre amou lhe causaria uma repulsa que ela jamais pudera imaginar.

Dias depois, ele faleceu. Ela chorou por tanto tempo quanto longas eram suas memórias. Ao final, declarou que, jamais, doença alguma diminuiria o amor que tivera por aquele homem. E que se trataria, ficaria saudável, seria feliz de novo, amaria de novo, em respeito ao quanto ele a ensinou a sorrir.


O BÊBADO E A EQUILIBRISTA é uma música de Aldir Blanc

quinta-feira, 24 de abril de 2014

CACHIMBO DA PAZ

Ele era um garoto muito especial. Amava bastante os pais e sempre quis orgulhar bastante a família. Como seu avô, o grande exemplo de todos, era militar da reserva, decidiu que seguiria seus passos. Dessa forma, alistou-se e, ao final de 2012, conseguiu êxito no que queria: entrou para o exército.

A alegria de todos teve tempo limite. Antes mesmo de o garoto concluir a fase de recruta militar, sua mãe caiu doente. Não demorou para que os médicos culpassem os anos de tabagismo. Por conta deles, ela estava gravemente enferma, com um câncer no pulmão, que foi tomando cada pouquinho de força. E, junto dela, o garoto e seu pai iam desabando. Até o momento em que, meses depois, a mãe faleceu.

A dor foi imensa. O garoto procurou formas de se livrar daquele sofrimento: bebeu muito, experimentou maconha, tragou cigarros. Passou noites em claro, na rua, usando qualquer desculpa para não voltar para casa e ver a o lado vazio da cama dos pais. Acabou que sua melhor fuga foi o trabalho. Tornou-se um soldado honroso, trabalhando sem descanso em prol da pátria.

Pensava na mãe em cada manhã e cada noite, e era a força do amor que ele e o pai sentiam, e que recebiam de alguma forma em troca, que lhe dava disposição para seguir adiante. Para buscar sempre o melhor de si e das pessoas. Não se deixou perder em vícios ou medos.

Numa tarde comum, após um acesso de tosse, seu pai cuspiu sangue. Procuraram a emergência onde eu trabalhava, e ali se suspeitou de tuberculose. O pai não tinha tanta tosse, nem tanta febre, mas a primeira coisa que todos imaginaram por conta da história, do raio X, da carga imensa de cigarros que o homem fumara. Ele realizou vários exames, e ao final percebemos que ele felizmente não tinha tuberculose.

Mas antes tivesse. Depois de uma tomografia e uma biópsia, nos demos conta que o que estava reservado para aquele pai era muito pior. E o que estava reservado para aquele garoto era muito mais doloroso. O pai também estava com câncer de pulmão, assim como a mãe tivera.

Difícil seria para aquele garoto de menos de 20 anos entender como uma coisa tão pequena, tão frágil, como o cigarro, poderia ser um assassino tão silencioso para sua família.



CACHIMBO DA PAZ é uma música de Gabriel, o Pensador

domingo, 4 de novembro de 2012

SONETO DA SEPARAÇÃO

Ao chegarmos na emergência, minha colega e eu fomos apresentados pelo colega do plantão anterior a uma paciente idosa, cercada por sua família. A paciente tinha sido colocada na área de maior gravidade do hospital, pois tinha chegado com falta de ar.

Logo conversamos com a família, e recebemos a explicação de que a paciente era portadora de câncer em fase terminal. Nas últimas horas vinha sem conversar, sonolenta e sem ar. Primeira coisa que fizemos foi saber qual o objetivo da família. Logo fomos informados por eles que não queriam medidas extremas. Estavam ali para dar conforto a ela, mas nada que prolongasse o sofrimento dela ou deles.

Decidimos em conjunto que ela não deveria ficar na área de pacientes graves, entre os intubados, morrendo e com dor. Colocamos a paciente na área de repouso, em uma cama isolada dos demais, e acompanhada pelos familiares. Liberamos para que ficasse mais de um familiar com ela, dada a situação excepcional.

Ao longo do plantão, íamos sempre checar para ver como a paciente estava. Tentamos encontrar razões para a piora súbita dela, formas de tentar reduzir a dor daquele momento e, talvez, permitir que ficasse bem, mesmo que nos momentos finais. De fato, ela tinha uma alteração orgânica ou outra. Era um sódio que estava muito alto ali, a respiração que estava muito ofegante aqui, um sangramentozinho acolá. Todos os problemas maiores foram contornados aos poucos, de forma que ela ficasse mais confortável.

A família não saiu do lado dela. Reverazam-se ao longo de todas as doze horas de nosso plantão, de forma que sempre havia duas pessoas ali com ela, abraçando, beijando, acalentando. Apesar de tudo, o nível de consciência da senhorinha em momento algum melhorou a ponto de conversar com eles. Curiosamente, a filha dela comentou comigo que, a caminho do hospital, a mãe teve sim um momento de claridade mental. Naquele instante em que acordou, a mãe olhou para a filha, abraçou ela e disse "Ah, minha menina, estou morrendo. Promete que ficará bem?".

Ao final do plantão, na hora final de nosso trabalho, a enfermeira me chamou para dizer que achava que a nossa velhinha estava parando. Fui vê-la e confirmei a suspeita. Sua respiração estava entrecortada, seu pulso ia ficando mais fraco a cada instante. Então, olhei para a filha e a sobrinha, que ali estavam, e avisei:
"Ela está partindo. Vamos deixá-la partir tranquila, ou querem que eu faça alguma coisa a mais?"

Em lágrimas, segurando as mãos da matriarca, as duas confirmaram o que queriam desde o início do plantão. Pediram que eu ficasse ali, mas que todos deixássemos ela descansar com aquela paz que tanto precisava. E assim foi. Aos poucos, a respiração da paciente foi ficando mais demorada, até o instante em que seu corpo ficou imóvel, sua boca ligeiramente entreaberta.

Ao contrário do que acontece com tantos pacientes com que lido nas emergências ao morrerem, a família não gritou, nem se desesperou. Choraram lágrimas silenciosas, apertaram as mãos emagrecidas e beijaram o rosto pálido. Declararam seu amor incondicional, acariciaram o rosto pela última vez e rezaram o descanso merecido.

Antes de eu me afastar para resolver as pendências do óbito, a filha me chamou para mostrar a face da senhorinha e disse
"Viu, doutor? Ela partiu em paz. A última coisa que ela fez antes de ir foi um sorriso. Ela sorriu para nós".

Embora eu não visse o sorriso, eu acreditei. Para quem conhecia a paciente há anos e anos, para quem convivera com todas as alegrias e dificuldades, ela sabia o que dizia. Então, eu simplesmente disse:
"É um sorriso de agradecimento, por tudo que vocês fizeram por ela".

E me afastei, enfim, para que a família pudesse ter seus momentos de despedida à vontade.



SONETO DA SEPARAÇÃO é uma música de Vinícius de Moraes

quarta-feira, 21 de março de 2012

PAI

Logo quando cheguei no plantão noturno, a enfermeira veio me informar sobre um paciente que estava no repouso, no leito 1. Era um idoso bastante simpático, em razoáveis condições clínicas, que tinha sido deixado pelo plantão diurno para reavaliação à noite.

Fui avaliá-lo. Embora estivesse estável, percebi que o paciente não evoluía completamente bem. Ele tinha uma provável pneumonia e, por conta dela, sua respiração estava ligeiramente acelerada. Fiz alguns cuidados iniciais, e logo avisei à enfermeira que iríamos transferi-lo para um hospital onde pudesse ser internado. Não demorou para que conseguíssemos uma vaga em um ótimo serviço de Olinda, e ficou certo que, tão logo a ambulância chegasse, nós o transferiríamos.

Continuei atendendo normalmente os outros pacientes da emergência. Após algum tempo, um senhor de meia idade pediu para falar comigo. Fui conversar com ele, e uma mulher mais nova, que se disseram filhos do idoso do leito 1. Eles explicaram que o hospital para o qual mandaríamos seu pai era distante de onde moravam, e que preferiam que o idoso fosse para casa, a ser internado lá. Pediram que eu internasse no hospital onde trabalho.

Expliquei à família que aquele hospital não fazia internamento à noite, portanto não teria como deixar o idoso ali. Então, o filho me pediu que liberasse o pai, e ele voltaria pela manhã para tentar ser internado se não estivesse melhor. Avisei ao homem dos riscos: o pai era idoso, estava com uma infecção respiratória que poderia se tornar grave se não recebesse os devidos cuidados. Mesmo com toda minha explicação, o filho estava reticente, enquanto a filha compreendeu o perigo de mandar o pai para casa.

Mesmo com o filho exigindo que liberasse o pai, eu fui firme: não deixaria o idoso sair do hospital, se não fosse para ser internado em algum lugar. Outros acompanhantes e a própria irmã conversaram com o homem, e ele acabou por aceitar o fato. Em menos de uma hora, conseguimos que a ambulância transferisse o idoso para o hospital maior, com um documento que eu escrevi ao médico de lá explicando a transferência.

Na semana seguinte, eu estava no meu rotineiro plantão no mesmo hospital, quando o porteiro bateu à porta do consultório e me avisou que um homem estava à minha procura. Assim que o paciente sendo atendido saiu, o homem entrou. Era o filho do idoso da semana anterior.

Logo quando sentou, nervoso, entristecido, ele me contou que o pai tinha falecido. Explicou que o pai foi para o hospital, onde se internou, mas veio a falecer no início da tarde seguinte. Mesmo com todos os cuidados, a infecção se agravou, como eu havia explicado a ele, e o pai não resistiu.

Ele passou em torno de dez minutos sentado à minha frente, desabafando. Não queria nada além disso: contar o que havia acontecido com o pai. Explicou que o pai era um homem forte, que lutara muito para criar ele e a irmã. Explicou a dificuldade que foi em pagar o caixão do pai, e que em dois anos teriam de tirar os ossos dele de lá e arranjar um jazigo. Mostrou o belo santinho que fizeram para a missa de sétimo dia dele.

Depois de toda a conversa, ele se levantou, agradeceu tudo que o hospital fez e pediu desculpas por tomar meu tempo de atendimento. Antes de sair, pegou um papel no bolso, desembrulhou e mostrou: era o documento da transferência que eu havia preenchido. Então, ele perguntou:

"Gostaria de ficar com alguma coisa pra lembrar de meu pai. Posso colocar esse papel num vidro pra pendurar na parede de casa?"

Sem acreditar, e até emocionado, eu obviamente deixei. Antes de ele sair, abracei o homem, pedi que rezasse sempre pelo pai. Ele se despediu e foi embora. Nesses momentos, difícil é você se concentrar depois para continuar atendendo...



PAI é uma música de Fábio Júnior

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

SUAVE VENENO

Fui chamado às pressas na emergência para avaliar uma garota de 16 anos, levada pela família, que parecia ter ingerido algum produto em grande quantidade, mas ninguém sabia qual. Ela estava um pouco sonolenta, mas de resto parecia bem. O grande problema é que se recusava a falar qualquer coisa. Abandonei os atendimentos habituais da emergência para passar alguns minutos com ela e tentar entender o que acontecia.

A garota estava sentada na maca, com lágrimas nos olhos e abraçando as pernas. Me apresentei como o médico que cuidaria dela e informei que estava ali para ajudá-la e não para criticá-la. Expliquei a situação em que ela se encontrava, tendo ingerido alguma coisa que não nos dizia, e dos riscos que corria em piorar e acabar morrendo, sem que pudéssemos fazer algo.

"Eu quero morrer" foram as palavras que ela me devolveu.

Sentei ao lado dela, deixei de lado o estetoscópio e perguntei o motivo daquela decisão, vinda de uma garota de 16 anos, com tantas coisas boas ainda para viver. Ela apenas continuou a chorar, em silêncio. Contei que os pais estavam do lado de fora, desesperados, e quis saber se era por conta deles. Ela me olhou com um ar de desprezo e disse:

"Minha vida é uma merda. Eu não presto pra nada. Então, é melhor morrer"

Nos encaramos por alguns segundinhos. Levantei e abri a porta da sala vermelha, onde ela estava. Do lado de fora, seus pais logo vieram, aflitos, perguntando como ela estava. Disse que esperassem um pouco e voltei a fechar a porta. Sentei ao lado dela e perguntei como uma pessoa inútil pode causar tanto desespero na família.

"Eles passaram o dia brigando comigo e com minha irmã. Eles não estão preocupados se vou morrer. Eu sou inútil, e quero ao menos poder decidir sobre minha morte"

Compreendendo a situação, eu ponderei:

"Você acha que vai resolver alguma coisa se morrer? Se você acha que é inútil, morrer não vai te tornar uma pessoa mais útil. Morrer vai cortar qualquer chance de você se sentir importante. Apenas viva você vai ter a oportunidade de crescer, de melhorar, de sentir que é útil. Mas, pra isso, eu preciso que você me diga o que tomou"

Ela não repondeu, olhando para o chão. Sem saída, eu disse:

"Eles estão preocupados com você porque te amam. Você tomou uma decisão muito ruim, baseada numa idéia boba de que não gostam de você e de que você não importa para eles. Só que você está errada. E, para garantir que você perceba isso, teremos que fazer algumas coisas desagradáveis e dolorosas. Mas tudo pelo seu bem"

Quando estava para sair da sala vermelha, ela murmurou:

"Você pode fazer o que quiser, pode me salvar... Não tem problema. Amanhã eu tento me matar de novo"

Orientei minha equipe a usar um sedativo nela, para que não atrapalhasse. Fizemos lavagem gástrica e utlizamos carvão ativado para evitar a ingestão do produto. Logo quando começamos a lavagem gástrica, o pai veio nervoso me explicar que uma tia encontrou dois frascos vazios de veneno de carrapato na mochila dela. De fato, com a lavagem gástrica conseguimos tirar um volume enorme de veneno do estômago da garota.

Depois dos procedimentos iniciais, mantivemos a menina na sala de recuperação, sob vigilância constante. Ela não chegou a dormir por completo, mas ficou bem mais calma e colaborativa. Algumas horas depois do atendimento inicial, fui reavaliá-la. Ela estava desperta e ainda tinha lágrimas nos olhos.

Mais uma vez, sentei ao seu lado. Ela permaneceu em silêncio. Eu então falei:

"A grande verdade é que você não queria morrer. Quem quer morrer não toma dois vidros de veneno e corre pra família pra dizer o que fez. A pessoa se tranca num banheiro, bebe veneno e se esconde do mundo pra morrer na solidão. O que você queria era chamar a atenção de seus pais, mostrar o que eles podem perder se não mudarem. Nesse ponto, você conseguiu. Você vai sair viva disso, vai ficar bem e não fará mais nada, porque sabe que conseguiu"

A garota começou a chorar de verdade. Segurei a mão dela por alguns segundos enquanto chorava e, quando se acalmou mais, a deixei descansar na sala de recuperação, com a companhia da mãe. Deixei o plantão, na manhã seguinte, orientando os colegas a tentarem transferi-la para receber cuidados de psiquiatra, pela possibilidade de repetir o ato. Soube, contudo, que ela acabou recebendo alta ainda naquela manhã, a pedido dos pais, que garantiram maiores cuidados a partir de então.

Passei uma semana inteira nervoso com a chance de receber uma notícia ruim sobre a garota. No plantão seguinte, porém, me surpreendi com a presença da mãe dela no plant
ão de emergência, que tinha ido se consultar com a pressão alta.

Ao me ver, ela agradeceu bastante tudo que havia sido feito e explicou que a garota estava bem, mais animada e já havia voltado para as ativididades habituais. E me contou que ela prometera não fazer mais aquilo depois de uma longa conversa com os pais. Ela prometeu um dia levar a garota para que eu a visse bem e em paz. Até hoje não o fez, mas tenho certeza que a garota não repetiu mais esse erro.


SUAVE VENENO é uma música de Nana Caymmi

sábado, 19 de novembro de 2011

JARDIM DA INOCÊNCIA

Uma garota de 9 anos chegou à emergência pediátrica sentindo fortes dores na barriga, que haviam começado há poucas horas. Era trazida pela mãe e pelo padrasto, que acreditavam se tratar de alguma comida estragada causando infecção intestinal. Mas ela não tinha diarreia.

Depois dos cuidados iniciais, quando estabilizamos a garota, nossa preocupação passou a ser entender o que estava acontecendo. Pedimos um exame de sangue, que não veio com alterações. Questionamos sobre diarréia, prisão de ventre, ardência na urina, entre tantas outras coisas. De tudo, além da dor, a garota só estava vomitando bastante.

Concordamos de início com o pensamento da família sobre o alimento estragado. Medicamos para aliviar as dores e mantivemos em observação. O problema é que, duas horas depois, a dor não havia aliviado em nada, e até tinha piorado. A garota gemia bastante, reclamando que o "pé da barriga" estava a ponto de explodir. Então, questionamos à mãe se a garota já havia menstruado, e ela não soube responder. Pensando na chance de ser algo ginecológico, decidimos realizar um exame superficial.

No momento do exame ginecológico, a garota ficou agitada, sem querer retirar a calcinha. Após muitos pedidos, e com a companhia carinhosa da mãe, ela aceitou expor sua intimidade. A maior surpresa de todos foi quando apareceu sangue na calcinha e na vagina. A preocupação geral foi imediatada. A médica tentou continuar o exame, mas a garota voltou a atrapalhar, nervosa, e preferimos parar.

Submetemos a menina a uma ultrassonografia. Quando o resultado chegou, todos foram nocauteados de surpresa. A menina estava grávida de dois meses. O que explicava tanta dor era o fato de ser uma gestação tubária. O embrião tinha se instalado em uma das trompas, o que inviabilizaria a gravidez. Por sorte, a trompa ainda não havia rompido, do contrário a garota estaria numa situação mais grave.

Ela foi submetida a uma cirurgia, com retirada da trompa e do feto ectópico. Após resolvida a situação de saúde da menina, ficou a grande questão: quem havia feito isso. O primeiro pensamento, sem dúvida, recaiu sobre o padrasto. Ao saberem do que a menina tinha, inclusive, a própria mãe desconfiou do marido. O homem, porém, afirmou jamais ter tocado na garota com esse tipo de intenção. Disse que a amava como filha.

Mesmo sob toda a negativa dele, o padrasto foi levado para maiores esclarecimentos e permaneceu como principal suspeito. O pai da menina, que não morava com ela, também foi chamado para prestar depoimento. Não conseguiram definir com exatidão quem deveria ser o culpado,  continuaram acreditando no envolvimento do padrasto.

A menina permanecera quieta sobre isso o tempo todo. Não falava nada quando questionada, fingia que nada havia acontecido. Continuava a tratar bem o pai e o padrasto. No dia da alta, porém, ela entrou em crise de histeria e se recusou a deixar o o hospital. A mãe não entendeu o motivo da reação. A garota não parava de gritar e dizer que queria ficar no hospital.

Por fim, a garota disse para a mãe que, se fosse para casa, o homem estaria lá para esperá-la. Naquele momento, a mãe se deu conta. Um de seus vizinhos, pai de duas crianças, era muito carinhoso com a menina, sempre aparecia na casa para visitá-los. E já tinha acontecido de ficar tomando conta da filha duas ou três vezes. Só podia ser ele.

Quando a polícia interrogou o homem, ele negou. Mas, depois que usaram o truque de fingir que a garota havia morrido por conta da gravidez, o vizinho não suportou a culpa e admitiu o que havia feito. Tinha sido ele quem abusara sexualmente da garota. Ele foi imediatamente acusado do crime, e até seus filhos tiveram de passar por exames médicos para certificar que não sofriam também abuso.

A menina continuou reticente de voltar para casa, mas recebeu alta hospitalar. Apesar de fisicamente bem, com a doença orgânica resolvida, seria difícil curar o tamanho dano que havia sido provocado em sua mente.


JARDIM DA INOCÊNCIA é uma música de Paulo César Baruk

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

DEUS PROMETEU

Aquele homem tinha o visual de um ermitão. Mantinha sempre uma barba longa, usava roupas desajeitadas e sujas e só andava com uma bengala pra apoiar sua dor. Era por essa dor que vinha diária e incansavelmente à emergência, apenas para receber medicamentos que controlassem o que sentia. E, de acordo com o que ele mesmo resmungava, nada aliviava por completo.

Não tinha pressão alta, diabete ou qualquer outra coisa, a não ser bastantes varizes nas pernas, como boa parte da população. Em um desafortunado dia, uma das maiores varizes de sua perna resolveu estourar. Ele foi operado e a situação parecia controlada, mas seguiu com infecção no local da variz e erisipela. Após o tratamento da infecção, restou para ele uma grande cicatriz na forma de uma úlcera varicosa.

Além do problema estético, essa úlcera lhe rendeu uma dor crônica, diária, que não aliviava com quase nenhum analgésico. Por conta disso, ia diariamente à mesma emergência para exigir analgesia, que lhe dava alívio por algumas horas, o bastante para dormir. E, no dia seguinte, voltava para mais. Não demorou a ser conhecido por todos do hospital. E, nesse caminho, logo passou a ser considerado como um viciado, não apenas pela forma como se vestia, mas pelas exigências grosseiras de medicamentos fortes.

Sempre que chegava um novo médico na emergência, a situação se repetia: o médico se recusava a passar de cara análgesicos que viciam, e o homem irritado gritava que não era um paciente qualquer. Independente de ser ou não um viciado, os medicamentos que aliviavam um pouco da dor eram prescritos, e ele sempre saiu satisfeito.

Nunca brigamos, e ele sempre me tratou bem. Geralmente quando chegava na emergência do meu plantão, ia direto me procurar pra eu lhe passar logo as medicações. No papel de médico, nunca considerei justo julgar se a dor era real ou supervalorizada, afinal só ele era capaz de senti-la. E não havia como avaliar efeito placebo pois nenhum remédio o fazia melhorar por completo.

Certa manhã, quando ele chegou para a dose diária de opiáceos, estava mais entristecido que o habitual. Questionei isso, e ele explicou que a dor estava insuportável, e que era um martírio viver daquela forma, com uma dor que nunca teria fim. E falou o quanto era ruim ter que estar num hospital diariamente, ainda mais encarando os olhares duvidosos dos profissionais.

Quando se levantou para ir embora, ele me encarou com um olhar franco e disse:

"Um sobrinho meu de 9 anos comparou minha vida com a de um personagem grego. Prometeus. Aquele que foi acorrentado e exposto aos corvos, que comiam todo dia um pedaço do seu fígado. Mas o maldito do fígado regenerava diariamente, e lá vinham de novo os corvos pra comer mais, lhe causando uma dor eterna. Eu estou aqui, doutor, apenas para assustar meus corvos"

Eu nunca mais duvidei da dor que ele sentia.





DEUS PROMETEU é uma música de Quatro Por Um