Procurou o hospital reclamando de uma fraqueza que tinha aparecido há alguns meses. Com o apoio de meu ótimo estudante de internato, decidimos internar para descobrir o que era. Nossa primeira pergunta foi simples: com aquela idade toda, fraqueza não era natural? Ela não gostou. Fez cara de quem não aceita ser tratada como alguém que deve passar o dia numa cama, e avisou "Sou campeã de dança na gafieira!".
Ela era mais surpreendente que isso. Conversamos sobre outros sintomas. Tinha apetite de leão e disposição para horas de atividade. De todas as coisas perguntas, a única que percebia era uma batucada no peito todas as vezes quando corria. QUANDO CORRIA. Realmente era difícil acreditarmos que alguém pudesse ser tão saudável naquela idade, e só isso nos ensinou que ser idoso não é deixar de viver.
Perguntamos se tinha alguma doença. Ela disse que em toda sua vida não adoeceu de nada sério, e só tomava remédio quando estava gripada. Não tinha pressão alta, diabetes ou colesterol... Nada! Comentou também que puxou à família: todos eram saudáveis, ninguém nunca ficou doente.
Logo na admissão dela, percebemos que estava muito pálida, embora não estivesse sentindo nada demais. Os primeiros exames confirmaram nossa suspeita: ela estava com anemia. Por esses exames, também, sua anemia parecia ser apenas deficiência de vitamina B12. Era incrível, para nós, imaginar que depois de 100 anos aquela simpática senhora estava sendo internada num hospital pela primeira vez porque estava com pouca vitamina. Incrível e apaixonante.
Desconfiando dessa deficiência, lembramos que ela costuma ocorrer em quem faz cirurgias bariátricas, em quem tem doenças no intestino e em pessoas que seguem dietas vegetarianas. Logo desconfiamos: era esse o segredo. Quando interrogada se era Vegan, a senhorinha riu "Adoro uma carninha de porco! Adorava criar porco na fazenda só pra fazer churrasco no final de semana. Mas também gosto de carne de boi".
Já estávamos sem saída para aquele mistério, que era muito maior a respeito de sua jovialidade que de sua doença. No segundo dia de internamento, porém, seus novos exames assustaram: mostravam uma condição laboratorial chamada pancitopenia, quando todas as células do sangue estão muito diminuídas. A própria anemia por deficiência de vitamina poderia causar isso. Mas havia algo a mais. Suas células de defesa, que no normal deveriam estar no mínimo acima de 1000, e idealmente acima de 4000, eram apenas 10 células a cada mililitro de sangue. Isso colocava nossa senhorinha em alto risco de pegar infecções.
Ela foi colocada em um quarto de isolamento, para que ficasse protegida do contato com outras pessoas. Levamos seu caso para discussão com um especialista em doenças do sangue, e o veredito dele foi um fardo: a doença de nossa vozinha era, sem qualquer dúvida, uma leucemia.
No terceiro dia de internamento, ela não era a mesma vozinha ativa e simpática. Estava mole, sonolenta, reclamando de frio. Apresentava-se com febre e outros sinais que nos mostraram estar com infecção na urina. Nossos esforços para evitar que se contaminasse não haviam surtido efeito. Corremos atrás de começar antibióticos e medicações que pudesse protegê-la, uma vez que o corpo dela não tinha células suficientes para salvá-la.
No quarto dia de internamento, um de seus olhos cresceu e inchou, por conta de um novo foco de infecção, agora na região da órbita. Novos antibióticos foram adicionados. A senhorinha já mal falava, referia dores em todo canto, falta de ar. Sequer nos permitia lembrar de nossa querida moça de 100 anos que nos fizera rir antes. Agora, apenas a preocupação nos envolvia. Procuramos a família para explicar a doença e a gravidade dela, e o que disseram foi "Nós já estamos preparados para o pior".
Mas nós não estávamos. Antes era difícil aceitar que ela pudesse ser tão saudável, e agora era terrível compreender que alguém tão saudável tivesse de repente desenvolvido um câncer. No dia seguinte, o brilho de seus olhos apagou de vez. Ela descansou daquele sofrimento e de uma vida que, provavelmente, não mais fazia jus a tudo que ela era. Apesar disso, deixou em nós a sensação que só vale a penar viver tantos anos se tentarmos ser tão mentalmente saudáveis e tão fisicamente felizes quanto ela foi.
RESPOSTA AO TEMPO é uma música cantada por Nana Caymmi