segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A CURA

Durante a noite, foi internada pela emergência pediátrica uma garotinha com história de infecções urinárias de repetição. De acordo com a mãe, a garota estava apresentando uma nova crise, com urina de cheiro ruim, dores abdominais, ardência para urinar. Embora fosse bastante quieta e quase não falasse, a menina estava bem.

Já era sua oitava admissão naquele hospital, para tratamento de infecção urinária. Só naquele ano, já era a terceira. Foi solicitada uma cultura de urina, que mostrou vários germes incomuns na infecção urinária, preocupando bastante a equipe pediátrica. Logo se decidiu investigar o que estaria causando essas infecções de repetição.

A primeira hipótese foi de alguma estrutura malformada nas vias de saída da urina. A garota foi submetida a exames, que comprovaram ser completamente normal. Enquanto isso, o tratamento com o antibiótico estava sendo realizado. Após o quinto dia do antibiótico, foi realizada uma nova cultura de urina. Para nossa surpresa, as bactérias continuavam lá, em grande quantidade.

Pensamos que algo estava errado, talvez na hora de coletar a urina. Foi realizada mais outra cultura de urina, que mostrou o mesmo resultado: várias bactérias, incomuns em infecções urinárias, atacando a bexiga e os rins da menina. Modificamos o antibiótico, já que o primeiro não demonstrou resultado.

No terceiro dia do novo tratamento, foi realizada outra cultura de urina. As estranhas bactérias que apareceram antes ainda estavam lá, como se nenhum tratamento tivesse sido feito. A equipe se reuniu para discutir o que poderia estar acontecendo. A opinião de todos era de que estava acontecendo um erro na coleta da urina, de alguma forma, e estava havendo contaminação.

Decidimos acompanhar a coleta de uma nova cultura de urina. Fui avaliar a coleta, que era realizada com um potinho. A enfermeira responsável fez como das vezes anteriores: entregou o potinho para a mãe, que levava a garota para o banheiro e colhia, de acordo com as orientações. Tudo parecia sem erros. E outra vez a urina estava infectada pelas bactérias.

Tentamos discutir com a mãe o que poderia estar acontecendo, e ela firme em dizer que a filha sempre passava por essa situação. Que não era novidade, e que a equipe estava preocupada porque não conseguia tratar a menina. A agressividade da familiar acabou levantando uma suspeita reversa. Conversei com a enfermeira e pedi que ela mesma realizasse a coleta da urina, sem a interferência materna. Assisti à coleta da urina, feita de forma impecável pela enfermeira.

E a cultura de urina veio sem qualquer bactéria. Para completar nossa suspeita do que estava acontecendo, fingimos pedir uma nova cultura de urina no dia seguinte, para a mãe colher. Durante a coleta, entramos no banheiro e flagramos o exato momento em que a mãe cuspia dentro da urina e mexia com o próprio dedo.

O diagnóstico final foi de uma situação clínica conhecida como Munchausen por Procuração, que ocorre quando um pai ou acompanhante reproduz no filho uma doença que não existe, algumas vezes até alterando o resultado de seus exames, de forma que o filho seja internado ou receba cuidados médicos para a doença inexistente. Existem até relatos de cirurgias feitas em crianças por conta disso.

No caso da menina, ela recebeu alta no mesmo dia, sem qualquer tratamento, e foi imediatamente encaminhada para os cuidados do serviço social, enquanto a mãe era avaliada pela psiquiatria.


A CURA é uma música de Lulu Santos

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