domingo, 31 de julho de 2011

NOS BAILES DA VIDA

Às 3h chegou à emergência um homem de 65 anos, sonolento, trazido por três mulheres de idades parecidas. Uma das mulheres se apresentou como companheira dele, e o levou para ser atendido, enquanto as outras esperaram fora do hospital.

A mulher explicou que o homem estava em uma danceteria com as três e, em certo momento, começou a sentir um mal-estar. Depois, quase desmaiou, quando então elas decidiram levá-lo para a emergência. A pressão estava muito baixa, o coração bem lento. Tomamos as medidas para acelerar mais o coração e aumentar a pressão.

Apesar de tudo que fizemos, o paciente continuava sonolento. Decidimos realizar um exame do coração, que veio com alterações. A conduta foi enviar o paciente para ser avaliado pelo cardiologista. Chamamos as três mulheres para explicar a situação e tomarmos as medidas para transferir o homem. Logo de cara, elas se desesperaram.

A mulher que entrara com o homem revelou que não era sua esposa. Disse que ela e uma das outras eram companheiras durante a semana, enquanto a verdadeira esposa e os filhos dele deveriam estar em casa, dormindo. Apenas a terceira não tinha relações com ele, era irmã de uma das duas, e vizinha do homem.

A preocupação delas é que, acompanhando o homem para o cardiologista, alguém decidisse contatar a família dele, e assim a esposa soubesse que ele estava com as três. Queriam evitar essa descoberta ao máximo. Após muita discussão, ficou decidido que a vizinha acompanharia o homem ao cardiologista, enquanto as amantes voltariam para casa, à espera de notícias.

Por volta das 6h, a vizinha voltou ao hospital sozinha, para nos contar que o diagnóstico final do homem foi a suspeita que tivemos - infarto. Ou seja, o homem infartou durante a noite de diversão com as três mulheres. Ela explicou que ele já estava bem, mas implorando para ninguém ligar para a tal esposa.

Em seguida, a vizinha fez a revelação final dessa aventura. Nenhuma das três outras mulheres sabiam, mas ela mantinha em segredo um caso com ele há quase uma década. Era a amante das amantes.




NOS BAILES DA VIDA é uma música de Fernando Brant

sábado, 23 de julho de 2011

ROLETA RUSSA

Chegaram à emergência um casal e outra mulher acompanhando. Todos jovens. Era madrugada, já passava das duas da manhã. A mulher era irmã da namorada. Logo de cara percebemos que a tal namorada estava com o rosto machucado. O namorado, abraçado a ela, estava muito ansioso, preocupado, explicou que a garota havia sido vítima de assalto e agressão física.

Os machucados não eram tão extensos. Além de um grande hematoma em um olho, tinha um corte na bochecha, por conta de um murro que havia levado. Cuidados dos ferimentos, suturamos esse corte e a deixamos em observação por algumas horas, já que havia sido vítima de trauma na cabeça. A irmã da garota nada falava, apenas acompanhava ela e o marido. A polícia chegou pouco depois; colheu o relato do casal e saiu da emergência em uns 10 minutos.

O hospital só permitia um acompanhante por paciente. A irmã dela, contudo, nos pediu para ficar também acompanhando. Como era madrugada, portanto a emergência estava vazia, acatei o pedido e deixei namorado e irmã com a vítima. Em torno de meia hora depois, pedi que uma enfermeira trocasse o soro da paciente. Logo após ela ir, a irmã da garota veio do repouso, um pouco transtornada, e foi para o lado de fora do hospital.

Quando voltou, a enfermeira contou que tinha visto uma conversa muito estranha entre o rapaz e a irmã. Ela dizia que não o deixaria a sós com a esposa, e ele exigiu que ela os deixasse sozinhos, que não teria problema. Então avisou: "Não abra a boca. Se você contar alguma coisa, vai se ver comigo". Logo em seguida, a viatura da polícia retornou.

Um policial me explicou que não tinha acreditado na história contada e foi até o local onde eles relataram ter acontecido a agressão, para averiguar. Havia um bar perto do local, e todos que estavam no bar contaram a verdadeira versão do caso - o próprio namorado havia batido na garota, após uma discussão motivada por ciúmes.

Os policiais chamaram o rapaz para conversar, e logo de cara contaram o que haviam descobertado. Obviamente, o garoto negou tudo, disse que nunca bateria na namorada, que era apaixonado e casaria com ela, e não teria motivos para bater na mulher que um dia seria sua esposa. Os policiais então foram conversar com a própria vítima, para ouvir sua versão.

A vítima confirmou todo o relato do namorado. Disse que havia sido assaltada, que os bandidos a agrediram, e ainda disse que nunca o namorado faria alguma coisa dessas com ela. Assim, os policiais, a contragosto, tiveram que aceitar essa versão, mesmo relatando a certeza de quem era o culpado.



ROLETA RUSSA é uma música de Adriana Calcanhoto

quarta-feira, 15 de junho de 2011

DENTRO DE MIM MORA UM ANJO

Um jovem casal de militares recebeu a maravilhosa notícia de que estavam grávidos. O processo de planejamento foi imediato e natural. Em poucas semanas, arrumaram parte de um enxoval, avaliaram os custos de reformar um dos quartos e procuraram o berço mais bonito.

Na época certa, a mãe realizou uma ultrassonografia para ver como estava o filho. E então veio a notícia ruim. Havia alguma coisa de estranho com a criança. Foram feitos alguns estudos, pesquisaram várias possíveis doenças no feto, e acabaram por definir o que tinha. Grande parte do cérebro da criança não existia. Não era o que se chama de anencefalia, porque havia ainda uma parte da massa encefálica, mas o volume era muito pequeno. A equipe médica logo de cara acreditou inclusive que seria incompatível com a vida.

A família desabou. A mãe, principalmente, entrou num progressivo estado de depressão, que só fazia piorar a cada semana. A sugestão médica inicial foi de que a gravidez deveria ser interrompida. O pai foi a favor do procedimento e de solicitar juridicamente o pedido de aborto, mas a mãe foi contra. Apesar de saber que as chances de vida eram mínimas ou nulas, queria seguir com a gravidez até o fim, e o pai acabou por concordar.

A gravidez prosseguiu sem grandes atropelos. Ao final do sétimo mês de gestação, nasceu prematuramente uma menina, que seria perfeita se não lhe faltassem quase 70% da massa cerebral. A primeira semana foi de tensão constante, e a equipe médica se revezou para manter a garota viva, necessitando de ajuda de aparelhos para conseguir respirar.

Mas ela ultrapassou a expectativa negativa. Mesmo sem boa parte do cérebro, mesmo com o pulmão pouco formado, sobreviveu à primeira semana de vida com força o bastante para atravessar muitas outras lutas. A garota não teve como deixar o hospital em momento algum. E, depois de estar completamente estabilizada, embora ainda ligada a máquinas para conseguir manter as funções de alguns órgãos, teve condições de sair da UTI e ficar em um apartamento dentro do hospital, onde poderia receber maiores cuidados da família.

Não conseguia deglutir o leite da mãe, sendo alimentada por sonda. Não conseguia se comunicar ou abrir os olhos ou emitir qualquer ruído, mas parecia sentir quando havia o toque dos pais, pois o corpo parava de se agitar e dormia tranquila.

A garotinha tem hoje quase quatro anos. Contra todas as possibilidades, continua viva e forte, crescendo no descompasso de seu organismo, ainda alimentada por sonda, ainda respirando por máquinas... Ainda amada pelos pais, que diariamente estão ali ao seu lado, com o mesmo toque de quando nascera e a mesma segurança do dia em que decidiram não parar a gestação.



DENTRO DE MIM MORA UM ANJO é uma música de Sueli Costa

terça-feira, 7 de junho de 2011

TENHO SEDE

Médico é acordado às duas da manhã para atender um paciente que chegou na emergência.
Quando entrou no consultório, deparou-se com um homem que parecia completamente sadio.

Médico: Boa noite. O que o senhor tem?
Paciente: Doutor... Eu vim porque estou com sede.
M: ... Com sede?
P: Sim, muita sede!
M: Desde quando o senhor está assim?
P: Foi agora de noite que atacou mais.
M: O senhor não bebeu água durante o dia, não?
P: Não... Trabalhei muito, só parei tarde. Esqueci de beber água.
M: E por que não bebeu agora?
P: Fiquei com medo de beber e ter alguma coisa.


...
[fatos reais]




TENHO SEDE é uma música de Gilberto Gil

segunda-feira, 30 de maio de 2011

MULHERES

Estava num desses plantões movimentados, atendendo a um homem que tinha sofrido atropelamento de bicicleta, quando chegou uma mulher perto de mim e murmurou:

"Doutor, será que você pode me atender?"

Não gosto quando estou atendendo um paciente e outro vem me interromper, porque me concentro em dar bastante atenção à pessoa. Por isso, na hora pedi para que a mulher esperasse eu terminar de atender e nem cheguei a lhe dar muita atenção. Mas ela não desistiu e disse:

"Mas doutor... É que eu estou sem meu dedo"

Aquilo foi o suficiente para eu deixar de lado o homem, que estava sem problema algum, e fosse ver o que havia acontecido com ela. E só então eu me dei conta que, na verdade, não era uma mulher, e sim um travesti. Continuei tratando como "senhora", porque ela própria disse preferir assim.

De fato, estava sem parte de um dos dedos. Vinha com a mão dentro de um saco cheio de gelo e, assim que eu me aproximei, tirou de dentro para eu ver. Metade do dedo indicador havia sido arrancado, ficando só o osso fraturado exposto para fora na pontinha que  continuou na mão.

Entrei em contato com o ortopedista para que a atendesse e tentasse resolver a situação. Questionei que acidente havia provocado aquilo. Então explicou: ela era garota de programa e, durante uma briga com outra, apontou o dedo para a rival, que prontamente pulou e lhe mordeu o dedo até arrancar da mão.


http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/foto/0,,14724945,00.jpgO ortopedista ao examinar decidiu de imediato tentar operar. A cirurgia durou uma parte da noite. Foram inúmeras tentativas de reimplantar o dedo à mão, mas nenhuma teve resultado efetivo, fosse pela demora para procurar socorro, fosse pela forma como o dedo tinha sido arrancado.

No pós-operatório, fui conversar com ela para explicar a situação. Ela aceitou bem e, chorosa, explicou que mentira para mim. De fato, o dedo havia sido arrancado por mordidas de outra travesti, mas na verdade aquela era sua melhor amiga, que havia lhe roubado um rapaz que era ótimo cliente, por quem a vítima era apaixonada. Ela finalizou dizendo:

"Ela já me roubou dinheiro, cliente, o namorado e agora tomou até meu dedo"

Naquele momento, eu vi que não tinha mais nada para falar que pudesse diminuir seu sofrimento. Dei meu apoio e preferi deixá-la absorver sua angústia até estar forte outra vez para seguir em frente.



MULHERES é uma música de Martinho da Vila

quarta-feira, 25 de maio de 2011

FÉ CEGA, FACA AMOLADA

Chegou à emergência uma paciente de 53 anos com problemas de visão que vinham se agravando nas últimas semanas. Contou que começou como visão dupla, mas depois os olhos foram realmente escurecendo até desaparecer por completo de um lado e parcialmente no outro. Referia também algumas dores de cabeça que apareciam diariamente, mas nada que a impedisse de fazer suas atividades.

A neurocirurgia foi logo contactada. Realizaram exame físico completo na paciente e identificaram mais alterações neurológicas, que imediatamente preocupou a equipe. A paciente foi levada no mesmo dia para realizar uma tomografia computadorizada de crânio.

Assim que saiu o resultado, logo ficou definido o motivo para a doença: a paciente estava com um grande tumor de crânio, provavelmente maligno por seu aspecto, acometendo uma parte do cérebro, e dessa forma afetando a visão, causando a dor de cabeça e as demais alterações.

Para não perder mais tempo, a neurocirurgia logo definiu uma data para realizar um procedimento cirúrgico em que pudesse extrair o tumor e diminuir seus efeitos danosos, para posteriormente realizar quimioterapia.

Embora tudo parecesse muito certo, um grande empecilho surgiu. Assim que soube da certeza de cirurgia, a paciente avisou: "Eu sou testemunha de Jeová". A informação foi o bastante para apavorar a equipe por razões óbvias. Os discípulos do dogma chamado Testemunhas de Jeová tem ensinamentos rígidos no que diz respeito aos cuidados de saúde. Uma das grandes proibições, que preocupa sempre os médicos, é que um testemunha de Jeová não pode, sob qualquer hipótese, receber tecido orgânico de outro ser humano.

Isso significa dizer que não podem receber qualquer tipo de transplante ou transfusão sanguínea. Nesse caso, a paciente certamente precisaria de reserva para transfusão, já que seria uma cirurgia cerebral, correndo riscos de receber sangue. Mas ela imediatamente se recusou. Não aceitaria de forma alguma receber sangue de outro ser humano. Segundo ela, "Se Deus me quer doente, Ele sabe o que faz. Se for para me curar, Ele arranjará um jeito".

Foram inúmeras as tentativas de dissuadi-la da idéia, mas ela se manteve irredutível. Só faria a cirurgia se não recebesse qualquer transfusão, do contrário processaria todo o serviço médico. Nenhum cirurgião também se arriscaria em operá-la sem a certeza de poder transfundir. Existem duas formas de resolver isso: a auto-transfusão e o uso de transfusão sintética.

A transfusão sintética usa sangue produzido em laboratório, não vem de outro ser humano. Tem grande risco de complicações, mas solucionaria o caso. O problema é que ainda é fora da realidade brasileira, ainda mais no SUS. A auto-transfusão seria retirar pequenos volumes de sangue da própria paciente e ir guardando até ter a quantidade necessária disponível. Isso demandaria muito tempo, o que não resolveria a urgência dela.

Por maiores que fossem os apelos da equipe de neurocirurgia, nada mudou a situação. A paciente decidiu que seria mais importante para seu espírito não receber o tratamento cirúrgico e morrer em paz com suas crenças. Dessa forma, a equipe se viu obrigada a lhe dar alta no terceiro dia de internamento, com as mãos atadas, sem muito o que fazer. O processo de auto-transfusão foi iniciado mas, ao cabo de duas semanas, as queixas pioraram, a visão do outro olho já estava quase perdida. Com quase 45 dias da admissão à emergência, a paciente foi a óbito, mantendo-se convicta de sua fé.



FÉ CEGA, FACA AMOLADA é uma música de Milton Nascimento

sexta-feira, 20 de maio de 2011

DE CONVERSA EM CONVERSA

Médico vai realizar a conversa inicial com uma paciente idosa.
Médico: A senhora tá tossindo?
Paciente: To não.
M: Mas tem catarro?
P: Só quando tusso.
M: Mas a senhora disse que não tá tossindo!
P: Eu tô sim.
M: ... Tá ruim pra respirar?
P: Tô respirando, sim.
M: ... Tá com dor no peito?
P: Estou.
M: Onde é a dor?
P: Aqui! (aponta para a barriga)
M: ... Tá urinando normal?
P: Estou. Xixi e cocô normal.
M: Que bom! E tem comido?
P: (nojo) Não, eu nunca como, não!
M: ...

[fatos reais]
 
DE CONVERSA EM CONVERSA é uma música de João Gilberto 

quarta-feira, 18 de maio de 2011

PAIS E FILHOS

Esse caso já foi postado antes no antigo formato, e estou remodelando ao atual...

Deu entrada na emergência um adolescente de 15 anos, obeso, acompanhado dos pais, queixando-se de dores fortíssimas na boca do estômago. Quando examinado, a dor era muito intensa em toda a parte superior do abdome, principalmente na região do estômago. Não sentia queimar, não tinha coisas que melhorassem ou piorassem.

Pela forma da dor, a principal hipótese inicial para ele foi de uma COLELITÍASE, que é o quadro de cálculos (pedras) na vesícula biliar. É raro na infância, mas poderia encontrar justificativa no peso elevado dele. O garoto foi internado para investigação e medicação para diminuir a dor. Solicitamos uma ultrassonogradia e uma endoscopia (mas essa demoraria para ser feita).

Logo no primeiro dia de internamento, ficou claro que não seria fácil diminuir o desespero dele. Mesmo com medicações analgésicas fortes, o garoto continuava a rugir de dor. O mais interessante, porém, é que ele ficava tranquilo em alguns períodos do dia, enquanto em outros passava horas e horas chorando e gritando.

Uma técnica de enfermagem muito astuta percebeu algo além e matou a charada. O garoto não parecia sentir dor e até brincava com outras crianças nos momentos em que não havia equipe médica por parte. E também quando a mãe estava fora. Bastava a mãe entrar na enfermaria, que ele começava a chorar e a gritar de dor.

Na manhã do terceiro dia de internamento, ele fez uma ultrassonografia, que descartou a hipótese de cálculos na vesícula. Então, até aquele momento, nada justificaria tanta dor. Na tarde daquele dia, a equipe médica decidiu fazer novo exame no garoto, enquanto a mãe estava fora. Ele reclamou que a barriga doía, mas estava bem. De repente, a mãe chegou. Então, o adolescente começou a gritar de dor e a chorar. A mãe também chorou, desesperada, aumentando a gritaria dentro da enfermaria por parte dos dois.

A decisão da equipe médica foi óbvia - o garoto estava fingindo ou, pelo menos, exagerando na dor. Apostamos então no conhecido tratamento placebo: na hora da crise dolorosa, fizemos uma infusão de apenas água direto na veia, fingindo que administrávamos medicação. E a dor do garoto melhorou.

Estávamos prontos para dar alta ao garoto com o diagnóstico de TRANSTORNO FACTÍCIO e acompanhamento pela psicologia para toda a família, em especial a mãe.
No dia da alta, ele foi levado para realizar a endoscopia já marcada. Quando voltou, o resultado surpreendeu a todos. Havia, no estômago, DUAS GRANDES ÚLCERAS, que justificavam por completo a dor intensa que o garoto tinha.

Portanto, seu diagnóstico final e efetivo foi de ÚLCERAS GÁSTRICAS, embora obviamente o menino tivesse uma influência negativa materna muito grande para lidar com a dor.




PAIS E FILHOS é uma música de Legião Urbana.