domingo, 4 de novembro de 2012

SONETO DA SEPARAÇÃO

Ao chegarmos na emergência, minha colega e eu fomos apresentados pelo colega do plantão anterior a uma paciente idosa, cercada por sua família. A paciente tinha sido colocada na área de maior gravidade do hospital, pois tinha chegado com falta de ar.

Logo conversamos com a família, e recebemos a explicação de que a paciente era portadora de câncer em fase terminal. Nas últimas horas vinha sem conversar, sonolenta e sem ar. Primeira coisa que fizemos foi saber qual o objetivo da família. Logo fomos informados por eles que não queriam medidas extremas. Estavam ali para dar conforto a ela, mas nada que prolongasse o sofrimento dela ou deles.

Decidimos em conjunto que ela não deveria ficar na área de pacientes graves, entre os intubados, morrendo e com dor. Colocamos a paciente na área de repouso, em uma cama isolada dos demais, e acompanhada pelos familiares. Liberamos para que ficasse mais de um familiar com ela, dada a situação excepcional.

Ao longo do plantão, íamos sempre checar para ver como a paciente estava. Tentamos encontrar razões para a piora súbita dela, formas de tentar reduzir a dor daquele momento e, talvez, permitir que ficasse bem, mesmo que nos momentos finais. De fato, ela tinha uma alteração orgânica ou outra. Era um sódio que estava muito alto ali, a respiração que estava muito ofegante aqui, um sangramentozinho acolá. Todos os problemas maiores foram contornados aos poucos, de forma que ela ficasse mais confortável.

A família não saiu do lado dela. Reverazam-se ao longo de todas as doze horas de nosso plantão, de forma que sempre havia duas pessoas ali com ela, abraçando, beijando, acalentando. Apesar de tudo, o nível de consciência da senhorinha em momento algum melhorou a ponto de conversar com eles. Curiosamente, a filha dela comentou comigo que, a caminho do hospital, a mãe teve sim um momento de claridade mental. Naquele instante em que acordou, a mãe olhou para a filha, abraçou ela e disse "Ah, minha menina, estou morrendo. Promete que ficará bem?".

Ao final do plantão, na hora final de nosso trabalho, a enfermeira me chamou para dizer que achava que a nossa velhinha estava parando. Fui vê-la e confirmei a suspeita. Sua respiração estava entrecortada, seu pulso ia ficando mais fraco a cada instante. Então, olhei para a filha e a sobrinha, que ali estavam, e avisei:
"Ela está partindo. Vamos deixá-la partir tranquila, ou querem que eu faça alguma coisa a mais?"

Em lágrimas, segurando as mãos da matriarca, as duas confirmaram o que queriam desde o início do plantão. Pediram que eu ficasse ali, mas que todos deixássemos ela descansar com aquela paz que tanto precisava. E assim foi. Aos poucos, a respiração da paciente foi ficando mais demorada, até o instante em que seu corpo ficou imóvel, sua boca ligeiramente entreaberta.

Ao contrário do que acontece com tantos pacientes com que lido nas emergências ao morrerem, a família não gritou, nem se desesperou. Choraram lágrimas silenciosas, apertaram as mãos emagrecidas e beijaram o rosto pálido. Declararam seu amor incondicional, acariciaram o rosto pela última vez e rezaram o descanso merecido.

Antes de eu me afastar para resolver as pendências do óbito, a filha me chamou para mostrar a face da senhorinha e disse
"Viu, doutor? Ela partiu em paz. A última coisa que ela fez antes de ir foi um sorriso. Ela sorriu para nós".

Embora eu não visse o sorriso, eu acreditei. Para quem conhecia a paciente há anos e anos, para quem convivera com todas as alegrias e dificuldades, ela sabia o que dizia. Então, eu simplesmente disse:
"É um sorriso de agradecimento, por tudo que vocês fizeram por ela".

E me afastei, enfim, para que a família pudesse ter seus momentos de despedida à vontade.



SONETO DA SEPARAÇÃO é uma música de Vinícius de Moraes

quarta-feira, 21 de março de 2012

PAI

Logo quando cheguei no plantão noturno, a enfermeira veio me informar sobre um paciente que estava no repouso, no leito 1. Era um idoso bastante simpático, em razoáveis condições clínicas, que tinha sido deixado pelo plantão diurno para reavaliação à noite.

Fui avaliá-lo. Embora estivesse estável, percebi que o paciente não evoluía completamente bem. Ele tinha uma provável pneumonia e, por conta dela, sua respiração estava ligeiramente acelerada. Fiz alguns cuidados iniciais, e logo avisei à enfermeira que iríamos transferi-lo para um hospital onde pudesse ser internado. Não demorou para que conseguíssemos uma vaga em um ótimo serviço de Olinda, e ficou certo que, tão logo a ambulância chegasse, nós o transferiríamos.

Continuei atendendo normalmente os outros pacientes da emergência. Após algum tempo, um senhor de meia idade pediu para falar comigo. Fui conversar com ele, e uma mulher mais nova, que se disseram filhos do idoso do leito 1. Eles explicaram que o hospital para o qual mandaríamos seu pai era distante de onde moravam, e que preferiam que o idoso fosse para casa, a ser internado lá. Pediram que eu internasse no hospital onde trabalho.

Expliquei à família que aquele hospital não fazia internamento à noite, portanto não teria como deixar o idoso ali. Então, o filho me pediu que liberasse o pai, e ele voltaria pela manhã para tentar ser internado se não estivesse melhor. Avisei ao homem dos riscos: o pai era idoso, estava com uma infecção respiratória que poderia se tornar grave se não recebesse os devidos cuidados. Mesmo com toda minha explicação, o filho estava reticente, enquanto a filha compreendeu o perigo de mandar o pai para casa.

Mesmo com o filho exigindo que liberasse o pai, eu fui firme: não deixaria o idoso sair do hospital, se não fosse para ser internado em algum lugar. Outros acompanhantes e a própria irmã conversaram com o homem, e ele acabou por aceitar o fato. Em menos de uma hora, conseguimos que a ambulância transferisse o idoso para o hospital maior, com um documento que eu escrevi ao médico de lá explicando a transferência.

Na semana seguinte, eu estava no meu rotineiro plantão no mesmo hospital, quando o porteiro bateu à porta do consultório e me avisou que um homem estava à minha procura. Assim que o paciente sendo atendido saiu, o homem entrou. Era o filho do idoso da semana anterior.

Logo quando sentou, nervoso, entristecido, ele me contou que o pai tinha falecido. Explicou que o pai foi para o hospital, onde se internou, mas veio a falecer no início da tarde seguinte. Mesmo com todos os cuidados, a infecção se agravou, como eu havia explicado a ele, e o pai não resistiu.

Ele passou em torno de dez minutos sentado à minha frente, desabafando. Não queria nada além disso: contar o que havia acontecido com o pai. Explicou que o pai era um homem forte, que lutara muito para criar ele e a irmã. Explicou a dificuldade que foi em pagar o caixão do pai, e que em dois anos teriam de tirar os ossos dele de lá e arranjar um jazigo. Mostrou o belo santinho que fizeram para a missa de sétimo dia dele.

Depois de toda a conversa, ele se levantou, agradeceu tudo que o hospital fez e pediu desculpas por tomar meu tempo de atendimento. Antes de sair, pegou um papel no bolso, desembrulhou e mostrou: era o documento da transferência que eu havia preenchido. Então, ele perguntou:

"Gostaria de ficar com alguma coisa pra lembrar de meu pai. Posso colocar esse papel num vidro pra pendurar na parede de casa?"

Sem acreditar, e até emocionado, eu obviamente deixei. Antes de ele sair, abracei o homem, pedi que rezasse sempre pelo pai. Ele se despediu e foi embora. Nesses momentos, difícil é você se concentrar depois para continuar atendendo...



PAI é uma música de Fábio Júnior