quarta-feira, 21 de março de 2012

PAI

Logo quando cheguei no plantão noturno, a enfermeira veio me informar sobre um paciente que estava no repouso, no leito 1. Era um idoso bastante simpático, em razoáveis condições clínicas, que tinha sido deixado pelo plantão diurno para reavaliação à noite.

Fui avaliá-lo. Embora estivesse estável, percebi que o paciente não evoluía completamente bem. Ele tinha uma provável pneumonia e, por conta dela, sua respiração estava ligeiramente acelerada. Fiz alguns cuidados iniciais, e logo avisei à enfermeira que iríamos transferi-lo para um hospital onde pudesse ser internado. Não demorou para que conseguíssemos uma vaga em um ótimo serviço de Olinda, e ficou certo que, tão logo a ambulância chegasse, nós o transferiríamos.

Continuei atendendo normalmente os outros pacientes da emergência. Após algum tempo, um senhor de meia idade pediu para falar comigo. Fui conversar com ele, e uma mulher mais nova, que se disseram filhos do idoso do leito 1. Eles explicaram que o hospital para o qual mandaríamos seu pai era distante de onde moravam, e que preferiam que o idoso fosse para casa, a ser internado lá. Pediram que eu internasse no hospital onde trabalho.

Expliquei à família que aquele hospital não fazia internamento à noite, portanto não teria como deixar o idoso ali. Então, o filho me pediu que liberasse o pai, e ele voltaria pela manhã para tentar ser internado se não estivesse melhor. Avisei ao homem dos riscos: o pai era idoso, estava com uma infecção respiratória que poderia se tornar grave se não recebesse os devidos cuidados. Mesmo com toda minha explicação, o filho estava reticente, enquanto a filha compreendeu o perigo de mandar o pai para casa.

Mesmo com o filho exigindo que liberasse o pai, eu fui firme: não deixaria o idoso sair do hospital, se não fosse para ser internado em algum lugar. Outros acompanhantes e a própria irmã conversaram com o homem, e ele acabou por aceitar o fato. Em menos de uma hora, conseguimos que a ambulância transferisse o idoso para o hospital maior, com um documento que eu escrevi ao médico de lá explicando a transferência.

Na semana seguinte, eu estava no meu rotineiro plantão no mesmo hospital, quando o porteiro bateu à porta do consultório e me avisou que um homem estava à minha procura. Assim que o paciente sendo atendido saiu, o homem entrou. Era o filho do idoso da semana anterior.

Logo quando sentou, nervoso, entristecido, ele me contou que o pai tinha falecido. Explicou que o pai foi para o hospital, onde se internou, mas veio a falecer no início da tarde seguinte. Mesmo com todos os cuidados, a infecção se agravou, como eu havia explicado a ele, e o pai não resistiu.

Ele passou em torno de dez minutos sentado à minha frente, desabafando. Não queria nada além disso: contar o que havia acontecido com o pai. Explicou que o pai era um homem forte, que lutara muito para criar ele e a irmã. Explicou a dificuldade que foi em pagar o caixão do pai, e que em dois anos teriam de tirar os ossos dele de lá e arranjar um jazigo. Mostrou o belo santinho que fizeram para a missa de sétimo dia dele.

Depois de toda a conversa, ele se levantou, agradeceu tudo que o hospital fez e pediu desculpas por tomar meu tempo de atendimento. Antes de sair, pegou um papel no bolso, desembrulhou e mostrou: era o documento da transferência que eu havia preenchido. Então, ele perguntou:

"Gostaria de ficar com alguma coisa pra lembrar de meu pai. Posso colocar esse papel num vidro pra pendurar na parede de casa?"

Sem acreditar, e até emocionado, eu obviamente deixei. Antes de ele sair, abracei o homem, pedi que rezasse sempre pelo pai. Ele se despediu e foi embora. Nesses momentos, difícil é você se concentrar depois para continuar atendendo...



PAI é uma música de Fábio Júnior

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

SUAVE VENENO

Fui chamado às pressas na emergência para avaliar uma garota de 16 anos, levada pela família, que parecia ter ingerido algum produto em grande quantidade, mas ninguém sabia qual. Ela estava um pouco sonolenta, mas de resto parecia bem. O grande problema é que se recusava a falar qualquer coisa. Abandonei os atendimentos habituais da emergência para passar alguns minutos com ela e tentar entender o que acontecia.

A garota estava sentada na maca, com lágrimas nos olhos e abraçando as pernas. Me apresentei como o médico que cuidaria dela e informei que estava ali para ajudá-la e não para criticá-la. Expliquei a situação em que ela se encontrava, tendo ingerido alguma coisa que não nos dizia, e dos riscos que corria em piorar e acabar morrendo, sem que pudéssemos fazer algo.

"Eu quero morrer" foram as palavras que ela me devolveu.

Sentei ao lado dela, deixei de lado o estetoscópio e perguntei o motivo daquela decisão, vinda de uma garota de 16 anos, com tantas coisas boas ainda para viver. Ela apenas continuou a chorar, em silêncio. Contei que os pais estavam do lado de fora, desesperados, e quis saber se era por conta deles. Ela me olhou com um ar de desprezo e disse:

"Minha vida é uma merda. Eu não presto pra nada. Então, é melhor morrer"

Nos encaramos por alguns segundinhos. Levantei e abri a porta da sala vermelha, onde ela estava. Do lado de fora, seus pais logo vieram, aflitos, perguntando como ela estava. Disse que esperassem um pouco e voltei a fechar a porta. Sentei ao lado dela e perguntei como uma pessoa inútil pode causar tanto desespero na família.

"Eles passaram o dia brigando comigo e com minha irmã. Eles não estão preocupados se vou morrer. Eu sou inútil, e quero ao menos poder decidir sobre minha morte"

Compreendendo a situação, eu ponderei:

"Você acha que vai resolver alguma coisa se morrer? Se você acha que é inútil, morrer não vai te tornar uma pessoa mais útil. Morrer vai cortar qualquer chance de você se sentir importante. Apenas viva você vai ter a oportunidade de crescer, de melhorar, de sentir que é útil. Mas, pra isso, eu preciso que você me diga o que tomou"

Ela não repondeu, olhando para o chão. Sem saída, eu disse:

"Eles estão preocupados com você porque te amam. Você tomou uma decisão muito ruim, baseada numa idéia boba de que não gostam de você e de que você não importa para eles. Só que você está errada. E, para garantir que você perceba isso, teremos que fazer algumas coisas desagradáveis e dolorosas. Mas tudo pelo seu bem"

Quando estava para sair da sala vermelha, ela murmurou:

"Você pode fazer o que quiser, pode me salvar... Não tem problema. Amanhã eu tento me matar de novo"

Orientei minha equipe a usar um sedativo nela, para que não atrapalhasse. Fizemos lavagem gástrica e utlizamos carvão ativado para evitar a ingestão do produto. Logo quando começamos a lavagem gástrica, o pai veio nervoso me explicar que uma tia encontrou dois frascos vazios de veneno de carrapato na mochila dela. De fato, com a lavagem gástrica conseguimos tirar um volume enorme de veneno do estômago da garota.

Depois dos procedimentos iniciais, mantivemos a menina na sala de recuperação, sob vigilância constante. Ela não chegou a dormir por completo, mas ficou bem mais calma e colaborativa. Algumas horas depois do atendimento inicial, fui reavaliá-la. Ela estava desperta e ainda tinha lágrimas nos olhos.

Mais uma vez, sentei ao seu lado. Ela permaneceu em silêncio. Eu então falei:

"A grande verdade é que você não queria morrer. Quem quer morrer não toma dois vidros de veneno e corre pra família pra dizer o que fez. A pessoa se tranca num banheiro, bebe veneno e se esconde do mundo pra morrer na solidão. O que você queria era chamar a atenção de seus pais, mostrar o que eles podem perder se não mudarem. Nesse ponto, você conseguiu. Você vai sair viva disso, vai ficar bem e não fará mais nada, porque sabe que conseguiu"

A garota começou a chorar de verdade. Segurei a mão dela por alguns segundos enquanto chorava e, quando se acalmou mais, a deixei descansar na sala de recuperação, com a companhia da mãe. Deixei o plantão, na manhã seguinte, orientando os colegas a tentarem transferi-la para receber cuidados de psiquiatra, pela possibilidade de repetir o ato. Soube, contudo, que ela acabou recebendo alta ainda naquela manhã, a pedido dos pais, que garantiram maiores cuidados a partir de então.

Passei uma semana inteira nervoso com a chance de receber uma notícia ruim sobre a garota. No plantão seguinte, porém, me surpreendi com a presença da mãe dela no plant
ão de emergência, que tinha ido se consultar com a pressão alta.

Ao me ver, ela agradeceu bastante tudo que havia sido feito e explicou que a garota estava bem, mais animada e já havia voltado para as ativididades habituais. E me contou que ela prometera não fazer mais aquilo depois de uma longa conversa com os pais. Ela prometeu um dia levar a garota para que eu a visse bem e em paz. Até hoje não o fez, mas tenho certeza que a garota não repetiu mais esse erro.


SUAVE VENENO é uma música de Nana Caymmi

sábado, 19 de novembro de 2011

JARDIM DA INOCÊNCIA

Uma garota de 9 anos chegou à emergência pediátrica sentindo fortes dores na barriga, que haviam começado há poucas horas. Era trazida pela mãe e pelo padrasto, que acreditavam se tratar de alguma comida estragada causando infecção intestinal. Mas ela não tinha diarreia.

Depois dos cuidados iniciais, quando estabilizamos a garota, nossa preocupação passou a ser entender o que estava acontecendo. Pedimos um exame de sangue, que não veio com alterações. Questionamos sobre diarréia, prisão de ventre, ardência na urina, entre tantas outras coisas. De tudo, além da dor, a garota só estava vomitando bastante.

Concordamos de início com o pensamento da família sobre o alimento estragado. Medicamos para aliviar as dores e mantivemos em observação. O problema é que, duas horas depois, a dor não havia aliviado em nada, e até tinha piorado. A garota gemia bastante, reclamando que o "pé da barriga" estava a ponto de explodir. Então, questionamos à mãe se a garota já havia menstruado, e ela não soube responder. Pensando na chance de ser algo ginecológico, decidimos realizar um exame superficial.

No momento do exame ginecológico, a garota ficou agitada, sem querer retirar a calcinha. Após muitos pedidos, e com a companhia carinhosa da mãe, ela aceitou expor sua intimidade. A maior surpresa de todos foi quando apareceu sangue na calcinha e na vagina. A preocupação geral foi imediatada. A médica tentou continuar o exame, mas a garota voltou a atrapalhar, nervosa, e preferimos parar.

Submetemos a menina a uma ultrassonografia. Quando o resultado chegou, todos foram nocauteados de surpresa. A menina estava grávida de dois meses. O que explicava tanta dor era o fato de ser uma gestação tubária. O embrião tinha se instalado em uma das trompas, o que inviabilizaria a gravidez. Por sorte, a trompa ainda não havia rompido, do contrário a garota estaria numa situação mais grave.

Ela foi submetida a uma cirurgia, com retirada da trompa e do feto ectópico. Após resolvida a situação de saúde da menina, ficou a grande questão: quem havia feito isso. O primeiro pensamento, sem dúvida, recaiu sobre o padrasto. Ao saberem do que a menina tinha, inclusive, a própria mãe desconfiou do marido. O homem, porém, afirmou jamais ter tocado na garota com esse tipo de intenção. Disse que a amava como filha.

Mesmo sob toda a negativa dele, o padrasto foi levado para maiores esclarecimentos e permaneceu como principal suspeito. O pai da menina, que não morava com ela, também foi chamado para prestar depoimento. Não conseguiram definir com exatidão quem deveria ser o culpado,  continuaram acreditando no envolvimento do padrasto.

A menina permanecera quieta sobre isso o tempo todo. Não falava nada quando questionada, fingia que nada havia acontecido. Continuava a tratar bem o pai e o padrasto. No dia da alta, porém, ela entrou em crise de histeria e se recusou a deixar o o hospital. A mãe não entendeu o motivo da reação. A garota não parava de gritar e dizer que queria ficar no hospital.

Por fim, a garota disse para a mãe que, se fosse para casa, o homem estaria lá para esperá-la. Naquele momento, a mãe se deu conta. Um de seus vizinhos, pai de duas crianças, era muito carinhoso com a menina, sempre aparecia na casa para visitá-los. E já tinha acontecido de ficar tomando conta da filha duas ou três vezes. Só podia ser ele.

Quando a polícia interrogou o homem, ele negou. Mas, depois que usaram o truque de fingir que a garota havia morrido por conta da gravidez, o vizinho não suportou a culpa e admitiu o que havia feito. Tinha sido ele quem abusara sexualmente da garota. Ele foi imediatamente acusado do crime, e até seus filhos tiveram de passar por exames médicos para certificar que não sofriam também abuso.

A menina continuou reticente de voltar para casa, mas recebeu alta hospitalar. Apesar de fisicamente bem, com a doença orgânica resolvida, seria difícil curar o tamanho dano que havia sido provocado em sua mente.


JARDIM DA INOCÊNCIA é uma música de Paulo César Baruk

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

DEUS PROMETEU

Aquele homem tinha o visual de um ermitão. Mantinha sempre uma barba longa, usava roupas desajeitadas e sujas e só andava com uma bengala pra apoiar sua dor. Era por essa dor que vinha diária e incansavelmente à emergência, apenas para receber medicamentos que controlassem o que sentia. E, de acordo com o que ele mesmo resmungava, nada aliviava por completo.

Não tinha pressão alta, diabete ou qualquer outra coisa, a não ser bastantes varizes nas pernas, como boa parte da população. Em um desafortunado dia, uma das maiores varizes de sua perna resolveu estourar. Ele foi operado e a situação parecia controlada, mas seguiu com infecção no local da variz e erisipela. Após o tratamento da infecção, restou para ele uma grande cicatriz na forma de uma úlcera varicosa.

Além do problema estético, essa úlcera lhe rendeu uma dor crônica, diária, que não aliviava com quase nenhum analgésico. Por conta disso, ia diariamente à mesma emergência para exigir analgesia, que lhe dava alívio por algumas horas, o bastante para dormir. E, no dia seguinte, voltava para mais. Não demorou a ser conhecido por todos do hospital. E, nesse caminho, logo passou a ser considerado como um viciado, não apenas pela forma como se vestia, mas pelas exigências grosseiras de medicamentos fortes.

Sempre que chegava um novo médico na emergência, a situação se repetia: o médico se recusava a passar de cara análgesicos que viciam, e o homem irritado gritava que não era um paciente qualquer. Independente de ser ou não um viciado, os medicamentos que aliviavam um pouco da dor eram prescritos, e ele sempre saiu satisfeito.

Nunca brigamos, e ele sempre me tratou bem. Geralmente quando chegava na emergência do meu plantão, ia direto me procurar pra eu lhe passar logo as medicações. No papel de médico, nunca considerei justo julgar se a dor era real ou supervalorizada, afinal só ele era capaz de senti-la. E não havia como avaliar efeito placebo pois nenhum remédio o fazia melhorar por completo.

Certa manhã, quando ele chegou para a dose diária de opiáceos, estava mais entristecido que o habitual. Questionei isso, e ele explicou que a dor estava insuportável, e que era um martírio viver daquela forma, com uma dor que nunca teria fim. E falou o quanto era ruim ter que estar num hospital diariamente, ainda mais encarando os olhares duvidosos dos profissionais.

Quando se levantou para ir embora, ele me encarou com um olhar franco e disse:

"Um sobrinho meu de 9 anos comparou minha vida com a de um personagem grego. Prometeus. Aquele que foi acorrentado e exposto aos corvos, que comiam todo dia um pedaço do seu fígado. Mas o maldito do fígado regenerava diariamente, e lá vinham de novo os corvos pra comer mais, lhe causando uma dor eterna. Eu estou aqui, doutor, apenas para assustar meus corvos"

Eu nunca mais duvidei da dor que ele sentia.





DEUS PROMETEU é uma música de Quatro Por Um

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A CURA

Durante a noite, foi internada pela emergência pediátrica uma garotinha com história de infecções urinárias de repetição. De acordo com a mãe, a garota estava apresentando uma nova crise, com urina de cheiro ruim, dores abdominais, ardência para urinar. Embora fosse bastante quieta e quase não falasse, a menina estava bem.

Já era sua oitava admissão naquele hospital, para tratamento de infecção urinária. Só naquele ano, já era a terceira. Foi solicitada uma cultura de urina, que mostrou vários germes incomuns na infecção urinária, preocupando bastante a equipe pediátrica. Logo se decidiu investigar o que estaria causando essas infecções de repetição.

A primeira hipótese foi de alguma estrutura malformada nas vias de saída da urina. A garota foi submetida a exames, que comprovaram ser completamente normal. Enquanto isso, o tratamento com o antibiótico estava sendo realizado. Após o quinto dia do antibiótico, foi realizada uma nova cultura de urina. Para nossa surpresa, as bactérias continuavam lá, em grande quantidade.

Pensamos que algo estava errado, talvez na hora de coletar a urina. Foi realizada mais outra cultura de urina, que mostrou o mesmo resultado: várias bactérias, incomuns em infecções urinárias, atacando a bexiga e os rins da menina. Modificamos o antibiótico, já que o primeiro não demonstrou resultado.

No terceiro dia do novo tratamento, foi realizada outra cultura de urina. As estranhas bactérias que apareceram antes ainda estavam lá, como se nenhum tratamento tivesse sido feito. A equipe se reuniu para discutir o que poderia estar acontecendo. A opinião de todos era de que estava acontecendo um erro na coleta da urina, de alguma forma, e estava havendo contaminação.

Decidimos acompanhar a coleta de uma nova cultura de urina. Fui avaliar a coleta, que era realizada com um potinho. A enfermeira responsável fez como das vezes anteriores: entregou o potinho para a mãe, que levava a garota para o banheiro e colhia, de acordo com as orientações. Tudo parecia sem erros. E outra vez a urina estava infectada pelas bactérias.

Tentamos discutir com a mãe o que poderia estar acontecendo, e ela firme em dizer que a filha sempre passava por essa situação. Que não era novidade, e que a equipe estava preocupada porque não conseguia tratar a menina. A agressividade da familiar acabou levantando uma suspeita reversa. Conversei com a enfermeira e pedi que ela mesma realizasse a coleta da urina, sem a interferência materna. Assisti à coleta da urina, feita de forma impecável pela enfermeira.

E a cultura de urina veio sem qualquer bactéria. Para completar nossa suspeita do que estava acontecendo, fingimos pedir uma nova cultura de urina no dia seguinte, para a mãe colher. Durante a coleta, entramos no banheiro e flagramos o exato momento em que a mãe cuspia dentro da urina e mexia com o próprio dedo.

O diagnóstico final foi de uma situação clínica conhecida como Munchausen por Procuração, que ocorre quando um pai ou acompanhante reproduz no filho uma doença que não existe, algumas vezes até alterando o resultado de seus exames, de forma que o filho seja internado ou receba cuidados médicos para a doença inexistente. Existem até relatos de cirurgias feitas em crianças por conta disso.

No caso da menina, ela recebeu alta no mesmo dia, sem qualquer tratamento, e foi imediatamente encaminhada para os cuidados do serviço social, enquanto a mãe era avaliada pela psiquiatria.


A CURA é uma música de Lulu Santos

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

FORÇA ESTRANHA

Ele chegou a primeira vez na emergência como um típico caso de pneumonia. Estava tossindo horrores, sem respirar direito. Tinha fumado a vida toda, e agora o pulmão reclamava de tanta nicotina acumulada. Foi internado por seus oitenta e tantos anos, recebeu oxigênio, tomou antibiótico, e logo estava um pouco melhor. Um pouco.

Também tinha perdido peso. Na tosse vinha um pouco de sangue. Uma investigação começou para definir melhor o que acontecia. Não tardou em mostrar uma grande massa no pulmão, depois revelada como um câncer já bastante avançado.

Mesmo sendo um câncer muito grave, a decisão do oncologista foi investir em uma tentativa de cura ou, pelo menos, controlar a doença. Foram iniciadas sessões de quimioterapia verdadeiramente devastadores, com o intuito de extirpar qualquer célula cancerosa do corpo daquele senhor.

Logo de início, o resultado foi terrível. Além do óbvio desgaste emocional, o corpo trouxe todas as piores reclamações - cabelos sumiram, o peso desabou, vômitos eram constante. Ainda assim, a força de vontade do homem só não era mais inabalável que a fé e o amor de sua família.

Ao longo da quimioterapia, houve duas outras internações por episódios de falta de ar. Apesar disso, a melhora do estado geral dele era evidente, o que animou a todos, em especial os familiares. Em sua última alta, ele sorria animadamente, agradecia à equipe médica e prometia que ia combater a doença com todas as suas capacidades.

Voltou ao hospital um mês depois. A família explicou que ele estava cansando como nunca e, o que era mais preocupante, havia desistido do tratamento. Não aguentava mais as sessões de quimioterapia e implorou que os familiares simplesmente o deixassem morrer sem sofrer com aqueles remédios que só lhe faziam mal. Queria morrer em casa.

Mas isso não aconteceu. Em uma semana, teve de ser internado de urgência. Mal conseguia respirar. A família estava em pânico e implorando que fizéssemos de tudo para salvar o pai. Logo na chegada, conseguimos reverter o quadro com máscara de oxigênio, mas ele deteriorava a cada hora. Então, surgiu o maior dilema médico - até onde investir no paciente?

Ele era um paciente portador de uma doença terminal. Em teoria, não havia sentido investir demais em um paciente como ele. De que adiantaria intubar, usar medicamentos de última geração, ressuscitar em caso de parada, se apenas estaríamos prolongando seu sofrimento? Ainda assim, a nova lei médica exige a participação do paciente e da família nas decisões, e bom senso do profissional pede o mesmo.

No dia seguinte, seu quadro obviamente era pior. Ele sequer estava acordado, mantendo-se em um estado de respiração mínima. A equipe decidiu conversar com a família para tomar uma decisão em conjunto. Havia opções de conduta a se tomar. O paciente poderia ser levado para UTI ou poderia ser deixado na enfermaria junto da família. Poderia ser intubado, ressuscitado em caso de parada; ou poderia ser dado apenas um suporte que aliviasse sua condição até a inevitável hora.

A família, em óbvias lágrimas desesperadas, pediu que não prolongássemos o tempo dele, que não forçássemos seu corpo a ir além dos próprios limites do sofrimento. Por fim, pediram que nós o levássemos para a UTI, pois não se encontravam mais em condições de ajudar o pai, estavam completamente arruinados fisicamente e devastados emocionalmente para lidar com a situação.

Colocamos o paciente na UTI no início da manhã. Ele veio a falecer poucas horas depois, com todo suporte que lhe era possível ser dado, sem medidas extremas. Morreu de forma tranquila, sem dor e com o mínimo de sofrimento que a doença permitia.

A medicina existe com vários propósitos. Alguns acreditam que servimos para salvar a vida das pessoas, outras acham que existimos para curar doenças, e poucos apostam na nossa capacidade de preveni-las.

Mas existem momentos em que o grande trabalho da equipe médica, e a verdadeira salvação humana, residem apenas em aliviar o sofrimento.


FORÇA ESTRANHA é uma música de Caetano Veloso

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

JUVENTUDE TRANSVIADA

Uma gestante de 15 anos mantinha consultas regulares com a enfermeira de seu posto de saúde, para realização do pré-natal, sem maiores problemas. Era sua primeira gravidez, e ela se tratava de uma mãe solteira. A previsão inicial sugeriu que a gravidez tinha se iniciado no mês de março.

Em determinada consulta pré-natal, ela levou o ultrassom feito para avaliar o bebê e, aproveitando o momento, questionou:

"Queria ter certeza de quando fiquei grávida. Minha mãe e eu achamos que foi em fevereiro, e não em março"

Ela explicou que tinha se enganado antes, e em feveiro ainda tinha menstruação. A enfermeira, habilidosa, decidiu recalcular, sob o aviso:

"Isso faz uma diferença grande pra mim, doutora"

Enquanto examinava o ultrassom, a enfermeira questionou o motivo.

"A senhora sabe como é mulher solteira... Um dia fica com um. Outro dia, fica com outro. O namorado que eu tinha em fevereiro é diferente do que tinha em março. E eu não estou mais com nenhum dos dois"

Compreendendo a situação, a enfermeira perguntou:

"O namorado de março soube da gravidez?"

"Soube, e eu disse que era dele"

A enfermeira terminou de examinar a jovem mãe. E, diante das características da gravidez e do que mostrava o ultrassom, avisou:

"É quase certo que você tenha engravidado mesmo em fevereiro"

Preocupada, a garota se questionou do que fazer.

"Agora, você vai ter que avisar ao namorado de fevereiro que ele deve ser o verdadeiro pai. Você não precisa voltar a namorar com ele, mas ele tem que participar da gravidez"

"E o que eu faço com o de março?"

"Ele vai ter que entender a situação..."

Quando a garota saiu do consultório, deixou na enfermeira a dúvida se realmente contaria a verdade sobre a gravidez para alguém.



JUVENTUDE TRANSVIADA é uma música de Luiz Melodia
História gentilmente cedida por Lívia Barbosa

terça-feira, 30 de agosto de 2011

PRA DIZER ADEUS

Um paciente estava internado na UTI há quase oito semanas, por conta de uma infecção respiratória, que o obrigou inclusive a ficar intubado por 20 dias, sendo depois feita traqueostomia (colocar um tubo na garganta por meio do pescoço). Ele pegava infecção atrás de infecção, cada vez combatendo e vencendo, mas adquirindo outra logo após, até um ponto em que seu corpo começou a ceder.

Ele estava tão abatido por conta da doença, que nem tinha forças para falar ou respirar direito, sendo mantido sedado com medicações. E, embora a sedação não fosse tão forte, ele continuava sonolento, sem fazer contato com ninguém, como se estivesse em coma. A família já estava desesperançosa de sequer se despedir antes que o homem pudesse partir.

Certa tarde em que eu estava de plantão na UTI, a filha dele me contou sobre como o pai era forte, o quanto havia lutado na vida para formar os cinco filhos (ela, por exemplo, é advogada), mesmo sendo um homem que nasceu no sertão. Então, levou para que eu visse uma homenagem que os filhos e a mãe haviam feito para ele alguns meses antes, quando ainda estava completamente são.

O texto está na imagem, em anexo. Era um poema de Mário Quintana, que os filhos haviam colocado num formato bonito para homenageá-lo em vida. A advogada me contou, com um sorriso triste, que, sem sentimentos como era, o pai nem deu tanta atenção àquela homenagem. Mas significava muito para ela e os irmãos.

De fato, o poema era bonito. Após o horário da visita, quando tudo na UTI estava tranquilo, fui até o leito daquele paciente. Falei a ele, mesmo sem ter retorno algum, sobre a homenagem que a filha havia feito. Disse que ela tinha me dado o texto, então reli o poema que algum dia ele havia conhecido.

Uns 30 minutos depois, voltei ao leito para reavaliá-lo. Minha surpresa maior foi encontrar lágrimas em suas pálpebras. No dia seguinte, o paciente estava tão bem, que conseguimos tirá-lo do aparelho de ventilação mecânica. Como ele estava respirando sozinho, foi possível tirar a sedação por completo.

Na hora da visita, a família o encontrou sem sedação, respirando sozinho e, o que era incrível, ele estava ligeiramente acordado. Conseguiu até responder a perguntas dos familiares balançando a cabeça, olhou cada filho e esposa, e ainda esboçou um sorriso. Disse pra mim que estava bem e não sentia dor alguma.

Três dias após, o paciente infelizmente faleceu. Durante a noite, do nada, seu coração foi desacelerando até parar por completo. Depois de tanta luta, depois de tanto sofrimento, de certa forma ele descansou.

Existe uma lenda na medicina que diz que um paciente tem uma melhora importante dias antes de falecer. Alguns chamam isso de "melhora da morte". Outros acreditam que é uma forma de se despedir desse mundo. Qual seja a razão para tal, ao menos esse meu paciente teve a chance de ouvir da família o quanto o amavam por uma última vez.


PRA DIZER ADEUS é uma música de Titãs