quarta-feira, 25 de maio de 2011

FÉ CEGA, FACA AMOLADA

Chegou à emergência uma paciente de 53 anos com problemas de visão que vinham se agravando nas últimas semanas. Contou que começou como visão dupla, mas depois os olhos foram realmente escurecendo até desaparecer por completo de um lado e parcialmente no outro. Referia também algumas dores de cabeça que apareciam diariamente, mas nada que a impedisse de fazer suas atividades.

A neurocirurgia foi logo contactada. Realizaram exame físico completo na paciente e identificaram mais alterações neurológicas, que imediatamente preocupou a equipe. A paciente foi levada no mesmo dia para realizar uma tomografia computadorizada de crânio.

Assim que saiu o resultado, logo ficou definido o motivo para a doença: a paciente estava com um grande tumor de crânio, provavelmente maligno por seu aspecto, acometendo uma parte do cérebro, e dessa forma afetando a visão, causando a dor de cabeça e as demais alterações.

Para não perder mais tempo, a neurocirurgia logo definiu uma data para realizar um procedimento cirúrgico em que pudesse extrair o tumor e diminuir seus efeitos danosos, para posteriormente realizar quimioterapia.

Embora tudo parecesse muito certo, um grande empecilho surgiu. Assim que soube da certeza de cirurgia, a paciente avisou: "Eu sou testemunha de Jeová". A informação foi o bastante para apavorar a equipe por razões óbvias. Os discípulos do dogma chamado Testemunhas de Jeová tem ensinamentos rígidos no que diz respeito aos cuidados de saúde. Uma das grandes proibições, que preocupa sempre os médicos, é que um testemunha de Jeová não pode, sob qualquer hipótese, receber tecido orgânico de outro ser humano.

Isso significa dizer que não podem receber qualquer tipo de transplante ou transfusão sanguínea. Nesse caso, a paciente certamente precisaria de reserva para transfusão, já que seria uma cirurgia cerebral, correndo riscos de receber sangue. Mas ela imediatamente se recusou. Não aceitaria de forma alguma receber sangue de outro ser humano. Segundo ela, "Se Deus me quer doente, Ele sabe o que faz. Se for para me curar, Ele arranjará um jeito".

Foram inúmeras as tentativas de dissuadi-la da idéia, mas ela se manteve irredutível. Só faria a cirurgia se não recebesse qualquer transfusão, do contrário processaria todo o serviço médico. Nenhum cirurgião também se arriscaria em operá-la sem a certeza de poder transfundir. Existem duas formas de resolver isso: a auto-transfusão e o uso de transfusão sintética.

A transfusão sintética usa sangue produzido em laboratório, não vem de outro ser humano. Tem grande risco de complicações, mas solucionaria o caso. O problema é que ainda é fora da realidade brasileira, ainda mais no SUS. A auto-transfusão seria retirar pequenos volumes de sangue da própria paciente e ir guardando até ter a quantidade necessária disponível. Isso demandaria muito tempo, o que não resolveria a urgência dela.

Por maiores que fossem os apelos da equipe de neurocirurgia, nada mudou a situação. A paciente decidiu que seria mais importante para seu espírito não receber o tratamento cirúrgico e morrer em paz com suas crenças. Dessa forma, a equipe se viu obrigada a lhe dar alta no terceiro dia de internamento, com as mãos atadas, sem muito o que fazer. O processo de auto-transfusão foi iniciado mas, ao cabo de duas semanas, as queixas pioraram, a visão do outro olho já estava quase perdida. Com quase 45 dias da admissão à emergência, a paciente foi a óbito, mantendo-se convicta de sua fé.



FÉ CEGA, FACA AMOLADA é uma música de Milton Nascimento

Nenhum comentário:

Postar um comentário