segunda-feira, 2 de maio de 2011

ATÉ O FIM

Uma senhora de setenta anos chegou para se internar no setor de cirurgia, acompanhada do carinhoso marido de mesma idade. Ela vinha para se submeter a uma cirurgia eletiva de vesícula (colecistectomia) por conta de pedras que vinham lhe causando várias crises de dor.

Inicialmente, tivemos a óbvia preocupação: era uma paciente idosa, o que aumentava seu risco cirúrgico. Mas o cardiologista nos tranquilizou que ela poderia se submeter ao procedimento por vídeo sem maiores problemas. No dia do internamento, o marido veio até a mim sem que ela soubesse e pediu:
"Doutor... Nos amamos muito. Por favor, não deixe que eu fique sozinho, não vou conseguir ficar só"

Eu o acalmei e disse que faríamos o melhor para ela ficar bem. E falava sério.
Ela foi operada no mesmo dia. Sua cirurgia transcorreu sem maiores dificuldades. Naquela tarde, quando ela ainda estava no setor de recuperação, o marido passou mal na enfermaria. Quase desmaiou, por conta de uma dor importante que sentia perto do estômago. Não era uma dor nova, mas ele tentara diminuir e esconder ao máximo durante os últimos meses.

Internamos o homem para ser investigado enquanto sua esposa continuava na recuperação. Fizemos um ultrassom, que logo mostrou o que ninguém queria ver... O carinhoso marido da paciente tinha uma tumoração importante no fígado. Ele então nos contou que sentia dores há bastante tempo e vinha perdendo peso nos últimos meses.

Decidimos seguir com a investigação realizando uma biópsia do fígado para identificar a causa do tumor.
Consegui marcar para o dia seguinte pela manhã. E assim foi. Na manhã seguinte, levamos o homem para realizar a biópsia. Durante o procedimento, o médico intervencionista reclamou da dificuldade em biopsiar o fígado, pois a lesão era muito friável. Isso significa dizer que já estava tão avançada, que o próprio fígado estava bastante destruído e se desintegrando com a tentativa de biópsia.

No início da tarde, quando levamos o homem para a enfermaria, sua esposa havia retornado da recuperação, muito bem. Eles ficaram deitados lado a lado, trocando palavras carinhosas.
Esse momento não durou muito. Coisa de duas horas depois, a paciente submetida à cirurgia no dia anterior veio correndo me chamar... Seu marido estava passando muito mal.
Quando fomos examiná-lo, a situação era grave. O homem estava desacordado, pálido, suando em bicas. Sua pressão havia despencado, quase não tinha pulso.

Foi levado às pressas para a sala de cirurgia. Aberta sua barriga, descobrimos que o fígado estava com hemorragia importante. A lesão era tão friável, que a biópsia tinha sido o bastante para causar o sangramento. Complicação RARA, mas possível, ainda mais num fígado tão destruído pelo tumor. Foram duas horas de cirurgia tentando resgatar o paciente. Mas não conseguimos. Ele veio a falecer no final daquela tarde em que tudo deveria ter acontecido bem, a poucas horas de sua esposa receber alta. Faleceu contra todas as regras pelo infortúnio de um câncer hepático avançado, por esconder os sintomas durante tanto tempo. O tipo de situação que nos torna impotentes dentro da medicina.



ATÉ O FIM é uma música de Engenheiros do Hawaii

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